“O destino de uma ilha é estar mesmo parada no mar
por todos os séculos que o tempo comporta”.
Sempre que leio os romances de Maria Luísa Soares coloca-se-me esta questão: a realidade introduzida nos seus livros – Quatro vozes e Virgínia (1994), Em nome dos princípios (1998), A ilha décima (2001) e, agora, Olhando o nosso céu (Editorial Presença, 2005) – dilui a ficcionalidade dos mesmos?
Numa altura em que grande parte dos escritores distorce a realidade, transfigura-a e opta por um processo de reelaboração do real, Maria Luísa Soares apreende e assume esse real, quer se trate da queda do avião da SATA em S. Jorge (A ilha décima), quer se trate da Cimeira das Lajes, na Terceira (Olhando o nosso céu). E não prescinde dos seus habitats: nas suas primeiras obras, África e Lisboa e, nas últimas, as referidas ilhas.
Há, em Maria Luísa Soares, uma vontade de reconstituir o real para sobre ele poder efabular. Neste último romance, a autora tanto pode falar da ocorrência de partos a bordo das aeronaves militares da Base das Lajes, como referir-se a uma galinha que comia pétalas de rosa… É precisamente esta capacidade de pôr em questão o real que dimana todo o poder evocativo dos livros desta escritora. Neles, há sempre a localização de um tempo e um lugar. Mais do que isto: há um entendimento desse tempo e desse lugar, pois que marcam a vida e a escrita da autora.
Tal como em A ilha décima, também Olhando o osso céu revisita e viaja na distância próxima entre a Terceira e S. Jorge. E, por conseguinte, é no espaço interior e exterior destas duas ilhas que se centraliza a acção do romance e deambulam as personagens. O livro remete-nos, desde logo, para uma incursão sobre o imaginário açoriano e a memória vivíssima da infância insular, ou seja, esse estádio paradisíaco, inicial, harmonioso, como que isento do desgaste do tempo. A personagem central é Jesualda, que, menina, tem como realidade íntima a ilha enquanto espaço de isolamento (o cerco do mar), a insularidade, a sensaboria da vida, a tristeza, o tédio, o bocejo, o peso dos dias, as horas vazias, a solidão atlântica…
Nascida na ilha Terceira, Jesualda transporta dentro de si uma inquietação: aos oito anos de idade perde toda a família no sismo de 1980. Seu pai tinha-lhe deixado por madrinha, Lucinda, uma antiga paixão. E será na ilha de S. Jorge, pela mão “virgiliana” de Lucinda, que Jesualda vai recomeçar a viver. Surge-lhe um mundo inesperado, uma realidade imprevisível, um novo horizonte. Descobre a beleza e os mistérios da ilha, bem como a sabedoria de um povo. E, em plena infância, vive um quotidiano de esperas e distâncias, perplexidades e dúvidas, resignação e amargura.
À semelhança de Sebastiana (de A ilha décima), Jesualda debate-se nas malhas de um destino a cumprir nos limites da circularidade Terceira/S.Jorge. Vive a idade dos porquês, a contas com sentimentos de nostalgia e apartamento. A uma relação inocente e fascinada com os outros, seguem-se as iniciáticas experiências: a solidão dos sonhos, o despertar para a sexualidade (a surpresa de ver o tio nu da cintura para cima, a primeira menstruação, etc.), para a vida e para o conhecimento das coisas.
A deambulação de Jesualda na geografia sentimental e afectiva daquelas duas ilhas não significa um anseio de ruptura, uma aspiração de fuga, de viagem, de aventura, nem tão pouco uma ânsia de quebrar amarras e partir – representa, tão somente, a necessidade de provocar uma revelação íntima – o desejo de aprofundar os segredos do eu. Ou seja, Jesualda quer apenas crescer e quer ser.
Em Angra do Heroísmo, a Jesualda adolescente e estudante do liceu (“rapariguinha crédula”, pág. 169) aprenderá e apreenderá o mundo e tenta ultrapassar a sua condição de mulher (ainda) incomodada, cercada, limitada, insulada. Devido a tal condição, ela abrir-se-á a espaços do universal – o que, nos romances de Maria Luísa Soares, é uma constante das personagens femininas. (De resto, há um coração autobiográfico que palpita fatalmente em toda a ficção narrativa desta escritora).
Misto de voluntarismo e sensibilidade, de razão e paixão, de inteligência e insatisfação, Jesualda vive a pardacenta rotina. Acontecimentos históricos (a Revolução do 25 de Abril, por exemplo), tempos perturbados e complexos farão estalar o contencioso social, a expressão ideológica, e trarão ao de cima uma certa cosmovisão açoriana. Os conceitos “Pachorra”, “Lazeira”, “Conformismo” e “Nostalgia” identificam o viver insulado. Várias vozes narrativas dão conta disso mesmo (incluindo o processo de intromissão de uma voz narrativa que surge enquanto veículo de uma visão da realidade ficcionada e que poderá muito bem ser a autora enquanto responsável pelo texto narrativo; chega mesmo a haver um originalíssimo diálogo entre uma voz narrativa e a própria autora…).
Cruzam-se com Jesualda outras personagens que, entre si, estabelecem laços de solidariedade, fraternidade, cumplicidade ou de conflito, e que reflectem, em maior ou menor grau, os condicionalismos geográficos, sócio-económicos e culturais açorianos: para além da já referida Lucinda, temos: tio Cerqueira, José da Luz (que tipifica a emigração açoriana nas Américas), Jacinto, Cristina, Joaquim, Aurora, Genoveva, João Maria, Bernardete, Jorge, Maria dos Véus, Dionísio Ventura, entre muitas outras. Com o fluir do tempo estas personagens ganharão consistência e contornos próprios, sendo que o desenlace do romance – a Cimeira das Lajes – acaba por funcionar como um sério aviso aos perigos da presença americana na ilha Terceira. De resto o livro oferece-nos olhares muito interessantes sobre a história, a memória e o imaginário da Terceira, bem como de S. Jorge – e é uma sincera e sentida declaração de amor a estas duas ilhas.
Bem carpinteirado, Olhando o nosso céu é atravessado de uma escrita ágil e envolvente, rica de espessura evocativa e profundamente humana. A merecer a nossa melhor atenção.
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